A Nau de Ulisses
“A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda.”
Hélia Correia
I
Uma jangada ondula sob o fingido azul,
e prossegue, entre ondas infiéis, o roteiro.
*
Carrega um final. E do azul abscinde
o negro e o nome oco daquele oceano,
como um albatroz antes da tempestade.
*
Palmo a palmo, mensura a magnificência
da dissolução, sonâmbulas velas humanas.
*
“Nos que vão misturar-se como um líquido
num líquido maior, perdida a forma”
e chegam à sorte antes de ti, antes do poema.
*
Quando o azul se descura, expõe-se deus.
O azul descura-se e a jangada suspende-se.
*
Conjectura-se o seu contorno, tranças de sal
à espera, como o vazio do íntimo instante
em que corpos se doam à solidão das águas.
*
E o poema pressagia alado toda a treva,
o nada rubro, o prazo da viagem, o roteiro.
*
O oceano com seu impuro epitáfio, Aquarius:
a jangada sem destino como um deus a morrer.
II
O enredo dos condenados é feito de águas
e prantos, e eles não sabem sequer que vão sucumbir
ao arrojo de sonhar. A pura glória é morrer-se,
acreditando que se adormece na viagem dos dias.
*
O enredo dos embarcadiços sob as estrelas
sonâmbulas e clementes é apenas a íntima sombra
da obscuridade manchada de sangue e vísceras humanas.
*
Mergulha-se e os pulmões ficam em habitáculos de sal.
Este enredo está preso aos pés do oceano, e a sua quelha
é de argúcia, de abismo, de um último e inteiro olhar.
*
A azul caligrafia dos náufragos sobre a Europa
é uma grandeza sísmica que avança. E um continente
oscila rubro e hirto, refugiado no inacessível e dobrado
leito da sua primordial memória sob a inquietude.
*
E um corpo volta-se para dentro na boca da espera!
III
Ali, esquelético, mas atlético, saltou do bote
de borracha e colocou os pés na bela Kos,
e ajoelhou-se, abeirando-se de qualquer destino.
*
- ‘Não tenhas medo, rapaz, agora estás
em segurança’, disseram-lhe. O jovem Ali,
olhou o mar – ‘Obrigado’, balbuciou, ‘obrigado’.
*
O bastardo de Ulisses, olhando ainda o mar,
a viva água azul-turquesa do mediterrâneo,
prefere pensar ser agora mais um turista, milenar!
*
Logrará a epopeia na recusa do “mundo reificado
ser mais do que melancolia?” Ali, olhou o mar
e pressentiu possuir, como deus, os dias contados.
*
“Esta é a terceira miséria”, a triste nau de Ulisses
com todo o peso do mundo sobre as águas refugiadas.
João Rasteiro
Abril, 2021
Sobre o autor:
É licenciado em
Estudos Portugueses e Lusófonos pela
Universidade de Coimbra.
Traduziu para
português vários poemas de Harold Alvarado Tenorio, Miro Vilarr e Juan Carlos
Garcia Hoguelos.
Trabalha atualmente
na “Casa da Escrita”- Câmara Municipal de Coimbra. É sócio da Associação
Portuguesa de Escritores e membro dos Conselhos Editoriais das Revistas Oficina
de Poesia e Confraria do Vento (Brasil).
Possui poemas
publicados em várias revistas antologias
em Portugal, Brasil, Moçambique, Itália, Espanha, Colômbia, Chile, e vários
poemas traduzidos para espanhol, italiano, inglês, francês e finlandês.
Prémios:
- “Segnalazione di Merito” do Concurso Internacional Publio Virgilo Marone, Castiglione de Sicilia, Itália, 2003;
- 1º Prémio no Concurso de Poesia Cinco Povos, Cinco Nações, 2004;
- 1º Prémio (na categoria de autores estrangeiros) do Prémio Poesia, Prosa e Arti Figurative- Il Convívio (Vercella, Itália, 2004);
- Prémio Literário Manuel António Pina (Câmara Municipal da Guarda/ Assírio & Alvim, 2010)
- A Respiração das Vértebras, 2001,
- No Centro do Arco, 2003,
- Os Cílios Maternos, 2005,
- O Búzio de Istambul, 2008,
- Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas, 2009,
- Diacrítico, 2010 e
- A Divina Pestilência, Assírio & Alvim, 2011.
Antologias onde participou:
- “Cânticos da Fronteira / Cánticos de la Frontera” (Trilce Ediciones – Salamanca), 2005;
- “Transnatural”, 2007, um projecto multidisciplinar sobre o Jardim Botânico de Coimbra.
- Antologia e exposição internacional de surrealismo O Reverso do Olhar, 2008;
- “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua – antropologia de uma poética”,2009, antologia organizada pelo poeta brasileiro Wilmar Silva e que engloba poéticas de Portugal, Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau.
- “O que é a poesia?”, 2009, livro de ensaios organizado pelo brasileiro Edson Cruz.
- “Poesia do Mundo VI”, 2009, antologia resultante dos VI Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra organizados pelo Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
- Em 2009, organizou para a revista ARQUITRAVE da Colômbia, uma antologia de poesia portuguesa, intitulada “A Poesia Portuguesa Hoje”.
Poderá conhecer mais sobre o autor através dos seus blogues:
http://nocentrodoarco.blogspot.com/
http://onovocenaculo.blogspot.com/
http://alapidacaodasilaba.blogspot.com/
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